Prólogo

O ATOR E AS CIDADES

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

.....................................

A arte do ator é feita de chegadas e partidas, a cada cidade uma nova experiência, em cada uma ele deixa um pouco de si e leva um pouco de tudo: rostos, risos, lágrimas, histórias, vivências, sensações. O trânsito, a mobilidade é a pátria do despatriado ator, vagar entre culturas, costumes e tempos diferentes é sua sina e paixão, pois ele se compõe e recompõe de cada momento. Tolo é aquele que pensa que a arte morre, tem seu lugar determinado por marcas geográficas, por cronologias... a arte foge de todo e qualquer enquadramento, não cabe no mapa, pois é cigana, não (re)conhece fronteiras, ela se constitui a partir do trânsito, do vagabundear do ator, seu veículo. Em sua carne e expressões ela ganha corpo e reflete os rostos de todos os homens de todos os tempos, arguta e criativa, ela mimetiza o mundo e esse seu habitante conturbado, o Homem e é adsorvida por ele.

A 24ª Semana Luiz Antônio traz a criativa itinerância que brota da releitura de grandes clássicos, de personagens que vagaram pelo mundo e foram incorporando os novos tempos, as novas cidades e estéticas. Em seus corações pulsam as lembranças da origem, mas em suas vestes o novo, o arrojado trânsito por locais insondáveis. E como diz o poeta:


a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa.

Ferreira Gullar



Evoé! e muita Lu(i)z...



Flávia Marquetti



segunda-feira, 28 de junho de 2010

POSTAGENS E COMENTÁRIOS DA 22 ª SEMANA LUIZ ANTÔNIO

CRUZAMENTOS & LEMBRANÇAS


Todos os que têm alguma lembrança, seja foto, seja relato, algo divertido ou outra coisa qualquer das antigas Semanas enviem-nas para o e-mail da Semana Luiz Antônio: semanaluizantonio@araraquara.sp.gov.br, que o pessoal postará no Blog. Assim, anarquicamente faremos um mosaico desses momentos, bem ao gosto das primeiras Semanas Luiz Antônio.
Faço minha a primeira contribuição, a imagem que aí vai é de um dos primeiros crachás da APAU DE ARARA, a associação fundada pelos artistas que organizavam as Semanas e lutavam por uma política cultural em Araraquara.






OBS.: o alfinete é o original, está aí desde os idos...


Flávia Regina Marquetti

CRUZAMENTO DE ENCANTAÇÕES

Nesses dez dias de apresentações da XXII Semana Luiz Antônio Martinez Corrêa, vimos subir aos palcos, quer fossem convencionais ou não, toda uma história do teatro nas suas mais diversas estéticas. Desde peças que retomam textos medievais, como as dos grupos Galpão e Rosa dos Ventos, passando pelo Renascimento, Grupo Preto no Branco e Produtos Notáveis, pelo século XIX, Bia Seidi e o Núcleo Experimental, até chegar ao moderno e ao contemporâneo, com as Cias Hiato e Simples, a Cia Inadequada, Os Satyros, Fernando Eiras e Emílio de Mello, Janaína Leite e Fepa e todas as demais peças e grupos que buscaram uma nova linguagem para esse fazer tão antigo, o ato de representar, de encantar.
O ator usa de seu corpo, de seus sentimentos, de seu sangue para dar vida a um personagem e cruzar sua existência à nossa, mais do que divertir, ele quer capturar a vida no que ela tem de mais intenso, de mais belo e de mais terrível, as relações entre os homens, seus desejos, suas angústias, suas alegrias, seus preconceitos, em suma, tudo o que faz com que sejamos SERES HUMANOS, falíveis e encantadores, pois só o que é falível, imperfeito pode enternecer, a perfeição é exclusividade de Deus e de sua eternidade, sempre igual a si mesmo.
O mais belo no teatro, o que faz com que nos emocionemos é a irremediável certeza do Humano, tanto no que diz respeito ao personagem quanto ao ator, ao contrário de todas as outras artes que usam da tecnologia como mediadora, o teatro nos permite ver ali, ao alcance da mão, em carne e osso, o personagem pulsando no sangue do ator. Essa presença física desses dois universos humanos tão distintos e tão reais, personagem e ator, fundidos em um momento único, que não se reproduzirá jamais, a não ser ali, naquelas poucas horas, com aquela platéia, naquele dia, pois cada espetáculo, embora o mesmo, é outro, é diferente, é marcado pelo inefável, pelo humano.
Benditos sejam os atores que se despem de si para viver o Outro e nos permitem viver com eles esse Outro, cruzamentos e encantações... a possessão de Dioniso – Evoé a todos que partilharam esta XXII Semana de LU(I)Z.

Flávia Regina Marquetti

A MEGERA DOMADA (PRODUTOS NOTÁVEIS – CAXIAS DO SUL/RS)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
A peça do Grupo Produtos Notáveis de Caxias do Sul foi um fecho perfeito para a XXII Semana Luiz Antônio, não só pela qualidade do espetáculo, mas porque apresentou o espírito da Semana, ou seja, as encantações e os cruzamentos.
Tendo a comédia de Shakespeare, A Megera Domada, como base, o grupo revestiu-o com as máscaras e a mise-en-scene da Commedia Dell’Arte, com figurinos de época e a utilização de bonecas para a representação de uma personagem (Bianca), se isso tudo não bastasse, a peça conta ainda com música ao vivo, efeitos sonoros e uma boa dose de humor.
A retomada de um texto clássico inglês, o uso das convenções da Commedia Dell’Arte (com direito a uma simpática homenagem a Arlequino, servidor de dois patrões, de Goldoni, pois o criado não só serve a dois patrões, mas também possui duas máscaras e indumentárias, que troca, deliciosamente, em cena com o auxílio da platéia) e a adaptação para a rua com suas intervenções e contextualizações para os dias de hoje (caso do uso das bonecas para Bianca, a mulher objeto desejada por todos, enquanto Catarina, nada objeto, é temida e rejeitada) representa bem a idéia central da Semana de cruzar as estéticas, as propostas teatrais e buscar um encantamento novo, aproximar do hoje o ontem e revelar a beleza existente no fazer do ator, na arte de interpretar, que independente da escolha estética, é sempre uma entrega.
Com irreverência e visão crítica, A Megera Domada, dos “guris” de Caxias do Sul propõe uma releitura de Shakespeare e uma reflexão sobre os papéis sociais e as relações de hoje, uma peça TRI Legal.


Flávia Regina Marquetti

domingo, 27 de junho de 2010

11º CRUZAMENTO - Varanda - Atelier Lauro Monteiro – Paraty/RJ

Lauro, seria muito bom ter as coisas todas das antigas Semanas registradas, não há dúvida, assim um pouco da história de Araraquara não se perderia. A Euzânia exibiu no Café de Investigação da Edna Portari um vídeo da 1ª Semana, lembra?! Aquela que fizemos na frente da Casa da Cultura pela manhã e no atelier da Euzânia à noite e foi muito legal ver todo o pessoal, muitos já se foram, como o Wilcon, a Cecília, outros estão longe, como o Evaldo Barros, hoje morando em Portugal, o pessoal do Jatubá fazendo uma leitura dramática, sem falar na exibição do Osni e da Eda na frente da Casa da Cultura, na parte da manhã, ali onde fica a Banca Espírita, os meninos da Radio Brasil, dirigidos pela Bernadete Passos e tanta gente que se esforçou, lutou, trabalhou de graça e colocou dinheiro do bolso para que hoje a XXII Semana Luiz Antônio Corrêa aconteça com esse brilhantismo. Sem dúvida é necessário resgatar essa história.

Flávia Regina Marquetti

10º CRUZAMENTO - HORA/LOCAL

Ontem enquanto esperava o início da peça Festa de Separação, eu discutia com outros que ali estavam a questão da escolha do local e da hora das apresentações. Por que algumas peças escolhem espaços e horários alternativos?
Não é simplesmente para nos tirar de casa em horários malucos, as boas peças, como as que vimos até aqui na XXII Semana Luiz Antônio, têm um bom motivo para isso e esse motivo está ligado à estrutura da sua dramaturgia.
No caso de Festa de Separação a escolha do horário, meia-noite, para o início não é nada casual, como muito bem diz o texto da peça, é à meia-noite que os encantamentos se quebram, Cinderela vira Gata borralheira, o príncipe vira sapo, a carruagem, abóbora e assim por diante. Iniciar uma peça, cujo tema é a separação e o desencanto amoroso, à meia-noite, é marcar esse momento tão terrível do fim do conto de fadas. Mas é também o horário em que as atividades externas, geralmente, cessam e que a solidão e o desejo de companhia nos fazem procurar o amigo para desabafar. Isso geralmente é depois das 24h, quantos de nós já não recebemos um telefonema, ou mesmo uma visita, em horário pouco convencional de um amigo precisando conversar e pedir um ombro?! Essa é a idéia da peça, ali não entramos como simples espectadores, mas como amigos com que se reparte algo muito íntimo, doloroso, com quem se pode chorar.
Os mais observadores notaram que o cenário era composto de forma a criar dois nichos, o dele e o dela, mas não poderíamos caracterizá-los como sala ou quarto, eram, na verdade, aqueles pequenos espaços, “cantinhos”, onde arrumamos o que mais gostamos, onde sentamos para ler, estudar, ouvir música, ficar só ou receber um amigo íntimo, este era o cenário/ambiente de Festa da Separação.
Outra peça que também nos levou para dentro, para próximo de seus personagens foi Hipóteses para o Amor e a Verdade, a escolha de um ambiente pequeno, para no máximo 60 pessoas (caso do espetáculo em sua forma original), revela o desejo de colocar o público cara a cara com a realidade que só observa de longe, passando de carro e sem baixar os vidros. Aqui a proposta é também de intimidade, mas em outro sentido, buscando fazer com que o espectador veja aqueles seres como iguais, como seres humanos que sofrem e sentem como qualquer um e, para isso, os Satyros nos colocam convivendo com eles.
Escuro ao adaptar seu formato original para viajar acabou perdendo um efeito essencial de sua proposta. Para os que não sabem Escuro foi concebida para ser realizada em uma piscina vazia, os atores no fundo, a platéia sentada na borda. O que muda? Tudo muda, nós a vimos confortavelmente sentados em poltronas do teatro, com nossos pés firmemente colocados no chão, seguros.
Peço que façam um exercício, imaginem a cena inicial, que ocorre no escuro, portanto sem luz alguma, quando se anuncia no alto-falante que ocorreu um acidente na piscina, a sensação que a cena nos causaria se estivéssemos sentados na borda de um enorme vazio, sem nada enxergar... No contexto da peça, nós estaríamos representado os atletas cegos (sentados na borda) que teriam ido para a competição do clube e, no final, quando se retoma a cena inicial e sabemos que alguém morreu ou se matou e há vários personagens que podem tê-lo feito, nós também estaríamos entre aqueles que estão na beira do abismo ou borda da piscina.
Nós vimos Escuro como quem vai a um grande aquário, protegidos pelo vidro/quarta parede que o teatro nos dá. Isso não quer dizer que a peça ficou menos interessante, apenas que ficou diferente, temos que racionalizar para alcançar seu efeito.
Em contrapartida, IN ON IT ganhou com o enorme palco de nosso teatro municipal, bem maior do que os atores estão acostumados no Eva Herz. Poderiam ter reduzido o espaço, mas exploraram a amplidão, o vazio para intensificar a idéia de distância entre os personagens e o enorme esforço que tem que ser feito para se lançar uma ponte e quebrar a solidão.
Mas e as peças em formato tradicional, nada trazem em suas ambientações? Ao contrário, tomando Cândida como exemplo. A peça escrita no século XIX foi pensada para o espaço da caixa do teatro e ali a vimos, mas a escolha do espaço feita pelo autor para ambientar as cenas é relevante. Shaw escolheu a sala da casa como cenário para Cândida e seus embates ideológicos, poderia tê-la ambientado na sala de jantar (mais intima), ou ainda em um dos quartos (mais íntimo ainda), mas escolheu a sala de visitas, essa opção indica o desejo de colocar a sociedade da época em cena e mais, a persona social dos homens da era Vitoriana em questão. As mudanças apontadas por Shaw na peça são da ordem do público, da aparência e não do íntimo, do ser e aí reside a crítica mais forte do texto.
Como se pode ver, local e hora escolhidos para o espetáculo podem dizer muito e da harmonização deles nasce o encantamento.
Flávia Regina Marquetti

sábado, 26 de junho de 2010

FESTA DA SEPARAÇÃO. Um Documentário Cênico (Janaina Leite e Fepa – SP)

Tocante, envolvente, inusitado e, sobretudo, corajoso, este foi o “Documentário Cênico” apresentado por Janaina Leite e Fepa. Pensado a partir da separação real do casal, Janaina e Fepa, a peça é o relato da experiência vivida por ambos ao decidirem se separar e nas festas que deram para os amigos na época. Buscando um ritual que equivalesse aos que cercam a união, o casamento, Festa da Separação nos propõe uma discussão sobre os relacionamentos no mundo de hoje.
Bem humorado, contando com vídeos feitos pelo casal em diversas fases da união e da separação, com músicas, trechos de filmes, de livros, de conferências, de depoimentos dos amigos, e de tudo o mais que cerca esse universo comum e, ao mesmo tempo, em cisão. Festa da Separação é ambientada em um espaço também cindido, há dois lados, o dele e o dela, (tanto no palco quanto na platéia), o dele recebe na entrada cachaça, o dela bombom sonho de valsa, dialogando simultaneamente com a platéia os atores constroem o prólogo, nos fazendo lembrar os momentos iniciais das separações, quando cada qual procura seu grupo para desabafar, contar o que houve e buscar apoio.
No palco (não convencional) vemos as coisas dele e as dela, as lembranças que cada qual guardou da relação e de suas vidas, intimista, o espetáculo cria uma cumplicidade com o espectador deliciosa. Muitos ao meu lado chegaram às lágrimas nos momentos mais intensos. Corajosamente os atores expõem suas vidas, seus sentimentos, suas dores nos fazendo rever os nossos conceitos de amor, união e separação.
Uma belíssima peça, feita na raça, em muitos sentidos, sobretudo hoje, pois Fepa caiu à tarde e rompeu os ligamentos do joelho e mesmo com dor e mancando fez o espetáculo... dizem que ele não é ator, mas músico, acredito que a partir de hoje ele mereça sim ser considerado um ator, pois só alguém que ama o palco faz isso.


Flávia Regina Marquetti

CÂNDIDA (Bia Seidi e Núcleo Experimental – SP/RJ)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
O espetáculo, Cândida, do Núcleo Experimental trouxe aos palcos da XXII Semana Luiz Antônio um texto do século XIX, de Bernard Shaw, autor que sabe explorar os diálogos entre as personagens, construindo um jogo dialético entre as diversas facetas sociais por eles representadas.
Ambientado na Inglaterra Vitoriana, quando a explosão industrial tem lugar, Cândida discute o papel da mulher em uma sociedade burguesa e patriarcal, e que vê surgir novas doutrinas, como a Socialista. Os conflitos desencadeados entre os discursos, ideais pregados pelas personagens e suas ações é o ponto central para que Shaw desenvolva sua trama.
Com montagem que recupera o teatro tradicional, quase esquecido nesses tempos de experimentações, Cândida busca recuperar o universo vivenciado por Shaw, com cenário e figurinos de época, só inovando na apresentação das rubricas em cena. Um espetáculo correto, embora um pouco frio. Destaque para Fernanda Maia, no papel de Prosérpina, uma divertida secretária.


Flávia Regina Marquetti

sexta-feira, 25 de junho de 2010

IN ON IT (Fernando Eiras e Emílio de Mello – RJ)




De todas as peças teatrais até aqui vistas, a mais difícil de comentar talvez seja esta, de Fernando Eiras e Emílio Mello, IN ON IT. Dizer que é uma riqueza... é pouco e nada diz em verdade, que as atuações são primorosas e impecáveis, todo mundo já disse e os prêmios comprovam. Talvez convenha começar por dizer que esta peça é um dos mais tocantes duelos entre dois grandes atores que já se viu.
Segundo Nietzsche, todos os homens são uma ilha, isolados em seus mundos e incomunicáveis, este é o ponto de partida de IN ON IT, mas em sua estrutura muito bem desenhada, como a luz e a marcação cênica, encontramos intersecções (pontes) entre esses círculos/ilhas que compõem os encontros e desencontros das personagens.
Com um cenário limpo, só recortado pela luz, dez personagens constroem uma teia delicada de relações. Em nenhum momento a cena é óbvia, embora possa parecer de uma simplicidade quase pueril, mas é necessário que o espectador triplique a atenção para poder fruir esse jogo que é desenhado na luz, que abre e fecha focos circulares, cria quadrados que vão do branco ao vermelho, todos plenos de significados para a cena. A marcação dos atores obedece à mesma orquestração, a palavra contracenar ganha novo sentido nos corpos e gestos desses dois esgrimistas, ora quebrando com as convenções do que estamos acostumados a ver, ora dentro de um naturalismo tradicional.
É quase impossível detalhar os pormenores, ou isolar uma cena, pois cada segundo, cada gesto tem um contorno próprio, mesmo que os vejamos repetidos mais adiante, são outros, embora os mesmos e é esse o segredo de IN ON IT, ser muitas peças em uma só, ser o conflito de vários personagens em um. Múltiplo e uno; perfeito no todo, mas deliciosamente fragmentário; quase uma divindade que nos toca e nos leva ao êxtase, só assistindo para sabê-lo.
Em tempo, nada mais perfeito para comemorar o dia do aniversário do Luiz Antônio do que a apresentação de Fernando Eiras e Emílio de Mello, o Luiz ia amar a peça e o trabalho dos atores. Evoé Fernando! Evoé Emílio! Evoé Luiz! Que a estrela de vocês continue brilhando muito.

Flávia Regina Marquetti

quinta-feira, 24 de junho de 2010

9º Cruzamento - Os Satyros e Silvia

É verdade, Silvia, que muita gente ficou de fora do espetáculo dos Satyros, mas não creio que os 124 espectadores ali presentes não estivessem DE FATO querendo vê-lo, se assim fosse não teriam chegado às 18h e ficado por mais de 3h esperando na fila. Outra coisa que me deixa abismada é que se fale tanto de respeito ao público e não se respeite o formato escolhido para o espetáculo. Hipóteses é um espetáculo intimista, em São Paulo é feito para 60 pessoas, o Grupo aceitou dobrar o número de espectadores para a XXII Semana, mas querer que eles descaracterizem sua própria proposta é não respeitar o que se diz querer ver. Mas se não foi possível vê-los aqui, sempre é possível ir a São Paulo, onde o espetáculo fica até o fim do ano e no seu formado mais apropriado, para 60 pessoas, e em um ambiente que se tentou reproduzir aqui, mas que lá é o ideal.
Flávia Regina Marquetti

8º CRUZAMENTO - ESCURO E THIAGO

Nada é mais frustrante do que ver um belo espetáculo e não ter com quem comentar, eu concordo contigo, por isso a idéia do Blog. Boa aproximação a que você fez entre o nome da Cia Hiato e o tema, não deixa de ser uma lacuna, uma falha na comunicação.

Flávia Regina Marquetti

7º CRUZAMENTO – TILL/HIPÓTESES /ESCURO

O que há de comum entre essas três peças? Aparentemente nada, mas se olharmos mais detidamente veremos que elas tratam de um mesmo ponto, com estéticas completamente diversas, sem dúvida.
Logo no início da peça dos Satyros, na fala do personagem Léo, TILL, do Grupo Galpão, é retomado, “o que sobra de um ser humano se tirarmos tudo dele?” A partir da mesma reflexão os dois grupos teatrais nos apresentaram peças muito distintas. Observem que a temática de Till data do Medievo, período profundamente marcado pela fé cristã, pelo medo e pela cisão entre corpo e alma, ao passo que os Satyros se propõem a discutir o pós-homem, ou seja, a possibilidade de transformação física e, claro, do próprio ser que é decorrente desta. Como na Idade Média, corpo e alma travam um embate, assumir um corpo e suas ações é questionar a sociedade, seus postulados e, sobretudo, definir um Eu em relação a um Outro, uma alteridade fada ao conflito.
Mas enquanto o Galpão optou por retomar a estética medieval, mesclando os gêneros, o riso ao lírico, os Satyros se posicionam no extremo oposto, trazendo o máximo de tecnologia para a cena, sem medo de explorar todos os conceitos da Arte Contemporânea, desde a frivolidade da arte como mercado, como expressão irônica dessa relação homem/consumo, ao desvelamento do interdito, a nudez dos corpos transformados e os sites de pornografia.
Para alguns dos que acompanham a XXII Semana, a estética apresentada pelos Satyros é uma estética de choque, mas a nudez em Hipóteses para o amor e a verdade não é nem erótica, nem chocante, ao contrário, ela é a expressão da dor, da dor do diferente, do que não é aceito, do preconceito e da luta em busca de afeto, como em Till e como em Escuro, uma das peças mais ousadas dessa XXII Semana Luiz Antônio.
Escuro, das Cias Hiato e Simples de Teatro, não apresentou nudez física no palco, digo física porque não havia nenhum corpo pelado em cena, mas as almas e as relações foram despidas. Se os Satyros ousam com a presença dos transexuais em cena, Escuro ousa tanto ou mais, expondo outros corpos/seres marginalizados, estigmatizados e vítimas de preconceitos, mas a ousadia maior é estética, na contra mão das propostas contemporâneas, na qual o feio, o sujo, o escatológico, o underground é a tônica, o maior arrojo das Cias Hiato e Simples foi explorar o belo, a delicadeza, a poesia visual e dramatúrgica.
A partir de Till, passando por Escuro até Hipóteses para o amor e a verdade tivemos uma verdadeira aula sobre como o tema das relações humanas, do preconceito e da incomunicabilidade pode ser explorado e, sobretudo, como a presença dos corpos dos atores em cena emprestando sua técnica, seus gestos, seus sentimentos às personagens nos faz por alguns momentos esquecer a distancia entre o Eu e o Outro e nos possibilita realmente um diálogo, um encontro com o Ser Humano, ainda a essência de toda obra de arte.

Flávia Regina Marquetti

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Isabela, a Astróloga de Araque (Cia Preto no Branco - São Carlos / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Nada é mais prazeroso do que ver um grupo jovem com muita criatividade e já com estilo próprio. O Grupo Preto no Branco de São Carlos, nos fez rir muito com a sua divertida farsa: Isabela, a astróloga de araque, retomando as personagens e convenções da Commedia dell’ arte, embora sem o uso de máscaras, o Grupo usou e abusou dos recursos sonoros em cena, música ao vivo, composta ou parodiada por eles; um excelente trabalho de corpo, destaque para Arlequino, e interpretações no ponto, impossível não se apaixonar por Briguela.
O texto bem aos moldes da Commedia dell’arte, é uma intriga amorosa, na qual o velho Pantaleão deseja se casar com Isabela, que ama Florindo, filho de Pantaleão, mas com a intervenção dos criados tudo se resolve, até mesmo a grande dívida de Pantaleão para com Matamoros. Mas se a intriga é bem conhecida do gênero, as intervenções e atualizações feitas pelo Grupo são bastante originais, impagável a música de Sidney Magal, o meu sangue ferve por você, no meio do duelo entre Matamoros e Arlequino e outros grandes momentos no qual o improviso é muito bem explorado em cena.
O pano de fundo, ou cenário, muito simples, bem ao gosto do gênero, é composto por uma cortina de retalhos, num delicioso “abrasileiramento” da proposta, no chão um semicírculo feito por uma corda, e estava delimitado o palco, os atores sentados do lado de lá desta produziam os sons, a música e outras intervenções na cena, nada mais simples e nada mais teatral.
Quem não foi à Escola Municipal de Dança Iracema Nogueira perdeu um ótimo espetáculo e a possibilidade de ver o novo prédio, muito bonito. Boa sorte ao pessoal do Preto no Branco e que eles continuem investindo neste caminho, que nós estaremos na platéia sempre que possível.


Flávia Regina Marquetti

6º CRUZAMENTO – PASSAGEM RÁPIDA NA ESQUINA DE ESCURO

Respondendo a “enquantovejo”, a atriz que faz a personagem Flávia não possui problema algum, o que vimos foi um magistral trabalho de interpretação.
Flávia Regina Marquetti

E... A VACA FOI PRO BREJO (CIA TÁRCIO COSTA – AMÉRICO)



Nesta manhã a Cia Tarso Costa fez a alegria de crianças de três escolas com um espetáculo divertido e educativo, mas sem ser chato, pois muitas vezes os espetáculos que trabalham temas ligados à preservação da natureza, sobretudo os voltados para o público infantil, são cansativos e tratam o tema como no livro didático. E... a vaca foi pro brejo fugiu dessa esparrela e contagiou as crianças, com cenário, indumentária e objetos cênicos todos feitos com material reciclado, até mesmo a vaca.
Com música ao vivo, boas canções e boa afinação, a Cia Tarso Costa fez a meninada interagir com o espetáculo e detalhe interessante, enquanto nas peças adultas, os espectadores se “esquivam” da interação, com a molecada a conversa é bem diferente, eles querem participar, foi divertido ver que algumas crianças sentadas mais para a lateral da platéia, mudaram de lugar, para mais próximo do corredor central a fim de poderem ser “puxadas” para o palco.
Um gostoso espetáculo que ao ensinar a preservação da natureza também educa os olhos dos pequenos em relação ao teatro, criando futuros espectadores. Destaque para a necessidade de a Vaca ter de se apresentar no saguão, após o espetáculo, aos pequenos fãs que choravam querendo vê-la, a despedida foi entre beijos e acenos.


Flávia Regina Marquetti

Hipóteses para o Amor e a Verdade - (Os Satyros - São Paulo / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

O espetáculo d’Os Satyros, Hipóteses para o Amor e a Verdade, poderia também se chamar Ensaio para a Solidão, digo isso porque em meio à grande ”parafernália” eletrônica utilizada na peça fica evidente a dor, a solidão e o desejo de amor do Homem.
Com um espetáculo interativo, que brinca com o público e seus celulares, que joga com a internet e seus chats e sites de pornografia ou de relacionamentos, o grupo soube aproveitar os diversos meios de comunicação para ilustrar a incomunicabilidade.
Mesclando momentos de profunda tensão, como na cena da prostituta embalada por papel filme pelo cliente apaixonado, que quase a asfixia para que diga o que quer; a cenas divertidas, como a da travesti que é guia turística das micro-realidades (deliciosa), a do gerente de fábrica que se confessa amante da luxúria, a peça não chega a ser distensa, pois mesmo nestes momentos mais leves, em que o riso brota, o texto é denso, os corpos, os gestos mostram a urgência desses personagens em se sentirem vivos num espaço que cada vez mais perde a humanidade.
Com o cenário composto por computadores, telões, manequins pintados e suspensos por correntes e até uma singela cortina de argolinhas, muito funcional, por sinal, os espectadores são convidados a se misturarem a esse mundo do centro velho de São Paulo, compondo junto com os personagens um mundo estranho, no qual ninguém ama ninguém e nem se comove com nada, mas que toca, incomoda, enternece. Um belíssimo espetáculo e reflexão sobre o homem, ou como querem os Satyros, o pós-homem.
Quase me esquecia, o detalhe delicado do bilhete em pedacinho de papel que o gerente de fábrica oferece ao público, com exceção dos escolhidos e seus mais próximos, não ficamos sabendo o que está escrito nele e isso é o melhor, pois cada um de nós escreveu ali alguma palavra ou mensagem que talvez oferecesse ao outro.

Flávia Regina Marquetti



Roleta Russa - (Cia Aindasemnome - Ribeirão Preto / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

A Cia Ainda Sem Nome, de Ribeirão Preto, buscou em Roleta Russa um jogo limite, no qual as personagens, no auge da sua violência e frustração, matam o que poderíamos chamar de poder, seja ele um representante da família, do clero, um chefe de serviço, ou outra forma qualquer. O tema que poderia ter sido melhor explorado rendeu uma peça morna, com lições de moral em algumas partes. Em um cenário todo quadriculado em branco e preto e com figurinos também nestas cores, que criam uma bela imagem, Roleta Russa deixou de explorar a idéia primeira que seu visual sugere: o Jogo de Xadrez, lembrando que este é um jogo de guerra. Sem usar de uma marcação característica do jogo, que poderia render muito, não só plasticamente, mas também à proposta, a Cia preferiu uma marcação e gestualidade a meio termo, corpos rijos, mas que não chegam a ser as peças do tabuleiro, que poderiam ser movidas por mãos invisíveis.
A música é o sexto integrante do grupo, longa, com letra que se funde à temática da peça, mas que não cria o efeito esperado, de comentar a cena nos moldes de Brecht, ação que esperei dela. O título também me pareceu perdido, pois o “jogo” de roleta russa é na verdade um misto de suicídio e assassinato, já que os que disputam voltam a arma para si e caso não ocorra o disparo é passada ao próximo e assim sucessivamente, até que um dos “jogadores” morra diante dos demais, esta idéia está ausente da peça, pois todos se voltam contra um personagem específico, com os demais alternando a possibilidade do assassinato, talvez os autores tenham pensado que esta troca da arma entre os personagens sugerisse a roleta russa, o que, no meu caso não ocorreu, fiquei torcendo para que o jogo de acusação iniciado realmente se voltasse aos demais personagens, mas também não correu. Faltou bala na agulha para Cia Ainda Sem Nome.

Flávia Regina Marquetti

terça-feira, 22 de junho de 2010

5º CRUZAMENTO – Inadequada - 4ª postagem

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
Meu caro amigo, a culpa não é nem sua nem da peça, como disse antes, gosto é algo particular e cada um de nós tem um. Minhas colocações no Blog não são para convencer ninguém de que algo que é ruim é bom, pelo contrário, eu apenas tento discutir as propostas de um ponto de vista técnico, quando percebo que há uma proposta e que ela foi executada com correção, comento os “achados” desta, pois como disse ao Cassiano, minha função aqui não é dizer se eu gostei ou não, isso cabe a vocês, eu apenas faço uma leitura, que não se pretende única, das peças.


Flávia Regina Marquetti

4º CRUZAMENTO – AGORA NA ESQUINA DE ESCURO

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
Respondendo a Nany, muito bem colocada a sua observação Márcia, a atriz que fez a personagem Flávia teve um esmero incrível na construção da personagem, gestos, voz, impecável, o que nos mostra um trabalho árduo de observação e ensaios. Outro trabalho minucioso e divertido e que cativou a todos foi a da personagem Aline, ou ainda do menino, que como a Secretária era mais “natural”, mas primorosos, criando um equilíbrio entre as diversas dificuldades de expressão.
Por falar na gestualidade, o grupo todo apresentou uma sincronia na repetição de alguns gestos e mesmo no que chamei de ciranda das cenas maravilhosa. Como tudo no espetáculo de um cuidado minucioso, primoroso, uma jóia. Eu costumo fazer destaques de coisas que me chamam a atenção nas peças, nesta não consegui, o conjunto todo de Escuro é o destaque.
Quanto ao que você postou Zé Guilherme, muito boa leitura, toda as cenas da peça são arranjadas de forma a que as vejamos de vários ângulos, mas têm algo de imobilidade, de instantâneo, como fotos, que muito bem podem ter sido feitas pelo personagem do fotógrafo, mesmo porque havia uma ou várias fotos que estavam em cena, na mão das demais personagens, que nós não vimos e que bem podem ser as cenas mostradas.
Sua leitura das fotos também me levou a outra reflexão. Eu havia visto no título, Escuro, a idéia de imobilidade, de medo, fragilidade e até desespero que nos acomete quando ficamos em um local sem qualquer iluminação, mas com a sua sugestão me veio também a da câmara escura, usada para revelar as fotografias feitas com máquinas como a que portava o fotógrafo e por oposição o que não é visto nos é revelado na peça.
A idéia da circularidade do texto, que vai como numa espiral “apertando” as informações para chegar à mesma cena do início é excelente, sobretudo, porque deixou o final em aberto, havia vários personagens que poderiam ter sofrido o “acidente” na piscina, com exceção da Secretária que está ao microfone. A teia dramatúrgica criada por Leonardo Moreira é mágica, pois consegue não ser cansativa e nos prende sem que sintamos o tempo, por incrível que pareça, ela durou 1h30. Um trabalho de joalheria, é a palavra que melhor define Escuro, sinto muito pelos que não viram.

Flávia Regina Marquetti

3º CRUZAMENTO – ainda na esquina da Inadequada

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
Pois é Fúlvia, você pode não achar nada de legal na peça, mas como alguém que estuda teatro e faz teatro tem que ao menos respeitar a busca de uma estética nova, paciência se ela não agradou ao público e é mais uma discussão teórica do que espetáculo propriamente dito. Toda inovação causa estranhamento e desconforto, para não dizer, má recepção, faz parte do risco. Nós temos a tendência de gostar do que já conhecemos e isso é muito natural, o que foge terrivelmente do nosso universo cria impacto e é difícil de assimilar, todas as estéticas passaram por isso, como nós estamos no “fim” dessa longa linha de experimentos, as propostas já chegaram conhecidas, amadurecidas, transformadas e a gente acostumada a elas. Se ninguém tivesse ousado mudar nós não teríamos saído do gripo primal. Valeu a postagem.



Flávia Regina Marquetti

2º CRUZAMENTO

Respondendo ao Cassiano e a Zandali. Vou ver o texto da Claúdia Schapira, que infelizmente não conheço, não sei se dará tempo durante a SLAMC, mas com certeza a gente vai comentar ele um dia desses nas ruas.
Cassiano, lembro bem do espetáculo do XPTO, com um texto do Lorca, que nenhum de nós gostou, lembro que comentei a proposta, mas que o grupo não a havia atingido por n fatores que não cabem aqui.
No caso da Inadequada acredito que é outra coisa, não sei se é só a minha leitura do espetáculo e não a proposta consciente do grupo, mas vá lá, é uma leitura que o espetáculo propiciou. O que o incomodou e a outros é a fragmentação da cena, essa pulverização que não permite ter, se quer, um fio condutor. Qual era a “história” da Inadequada? Nem eu respondo essa, o tema era futebol, mas não tinha história, nosso gosto teatral, no qual me incluo, pede um desenvolvimento dramático no qual vemos não só o esboço de um personagem, mas aquela densidade do teatro que faz com que naqueles minutos toda a existência se revele numa cena e isso não há na proposta da Inadequada.
Agora, se você quer que eu me posicione do tipo gostei ou não gostei do espetáculo, que é outro tipo de julgamento e que nem caberia a mim aqui, eu me posiciono... não sei se gostei ou não, é diferente e isso sempre me atrai, você sabe, gosto de quem se arrisca, mas só vi esse espetáculo neste formato até hoje e com apenas um espetáculo não dá para ter um critério de se gosto ou não, talvez a gente se encontre mais pra frente, vendo outros espetáculos deste tipo e eu chegue a conclusão que não satisfaz o desejo de teatro almejado por mim, talvez, mas para isso preciso ver muitos outros espetáculos da própria Cia Inadequada e de outras companhias que usem a mesma linguagem fragmentada. Mas o espetáculo valeu, com certeza, por despertar esses cruzamentos.
Flávia Regina Marquetti

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Escuro (Cia Hiato e Cia Simples - São Paulo / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Escuro (Cia Hiato e Cia Simples de Teatro – SP)

A peça de hoje, Escuro, da Cia Hiato e Cia Simples de Teatro de São Paulo, foi uma deliciosa surpresa, digo isso porque fazer uma peça onde os personagens apresentam deficiências físicas e mesmo mentais nos leva a imaginar algo denso, pesado e as duas Cias nos pegam exatamente aí, com uma peça leve, divertida, com interpretações impecáveis, com figurinos, cenário e iluminação ao mesmo tempo simples e requintados, poderíamos dizer líricos.
Usando uma palheta que vai do azul ao verde, mais o branco e o negro, o figurino não só estabelece o elo necessário entre os seres e a água da piscina imaginária, como nos remete à idéia de tristeza, solidão e esperança, na vida desses delicados peixes mergulhados na piscina branca. O uso do branco para a piscina corrobora ainda mais para a idéia de amplidão e, portanto, de desamparo desses seres quase imaterias que flutuam no vazio de uma existência difícil.
O uso dos aquários enquanto um signo da piscina é magistral, pois não só dá a dimensão da água, mas também do confinamento e de serem os personagens “animais” em exposição, peixes exóticos devido às suas deficiências.
Para os que não puderam assistir a Escuro, lendo o que escrevo talvez tenham uma idéia errônea sobre a peça, embora quase todos os personagens apresentem algum tipo de problema visual, de fala ou auditivo, a peça transcende este limite e com uma dramaturgia deliciosa nos faz entrar na ciranda dos fatos e ver que todos nós fazemos parte desse universo, que as deficiências ali apresentadas são só uma divertida maneira de nos fazer ver a grande deficiência do ser humano: a incapacidade de comunicar seus sentimentos e de lidar com o diferente.

Flávia Regina Marquetti

1º CRUZAMENTO

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria
Alguém veio me dizer hoje que “não achou tão legal a peça da Cia Inadequada, pois tudo estava muito disperso, não era como as outras, que prendiam a atenção” e o Cassiano postou também um comentário sobre ela, respondo a ambos.
Pois bem, a proposta estética da Cia Inadequada é bastante diferente das demais peças vistas até aqui na Semana, mesmo com a presença de peças de rua como Till e A farsa do Advogado Pathelin. Se nas duas anteriores, como na Inadequada, os atores usam do improviso, têm de lidar com a intervenção não programada do público, eles, ao contrário da Inadequada, possuem um foco, um núcleo dramático que se concentra em um único ponto, o “palco” e sua ação, isso se deve ao fato de serem peças cujas estéticas datadas do Medieval, visavam capturar o olhar do público para a cena e a mensagem aí veiculada.
No caso da Inadequada Futebol Clube a idéia é outra, todos os que já foram a um estádio de futebol sabem que a torcida é parte integrante do espetáculo, mesmo em jogos como os da copa do mundo a torcida às vezes rouba a cena, até mesmo pela TV; quando pensamos em jogos menos interessantes, aí sim é que a torcida ganha a frente e inverte a relação de ver e ser visto. Dou um exemplo meu, embora não goste de futebol, quando adolescente ia aos jogos da São Manuelense, time da minha cidade natal, que pertencia à última divisão da última divisão naquela época, o jogo sempre era ruim, os jogadores mais chutavam o campo que a bola, pois bem, e porque a gente ia? Ora para ver a torcida da São Manuelense, um espetáculo a parte, divertido, engraçado e que infernizava a torcida adversária, geralmente acabando em pancadaria. É esse espetáculo disperso, que mescla a necessidade de dividir a atenção ora no centro do palco/gramado ora nos lances que ocorrem fora dele é que a Cia Inadequada trouxe.
Durante o espetáculo da Cia Inadequada, há todo momento havia algo acontecendo no “centro” da representação, mas as conversas dos atores com o público (quando apresentavam as crônicas do Nelson Rodrigues) muitas vezes roubavam a cena, pois os risos e manifestações dos ouvintes, vistos de longe pelos demais presentes, aguçava a curiosidade, uma expectativa em descobrir o que estava acontecendo ali... e como as reações variavam de acordo com o grupo e o texto, nós nos movíamos como torcedores que percebem algo acontecendo além da partida, do outro lado da arquibancada, com pescoços erguidos, caras de suspense e até o desalento de não ver surgir a tão esperada “briga” que se anunciava em nossa imaginação.
O espetáculo da Cia Inadequada propõe que se assista não só ao palco, mas também a platéia, como num jogo, no qual a atenção do campo às vezes sobe para arquibancada e vice-versa, interagindo, nada mais adequado para quem escolheu como tema o espetáculo do futebol, proposta cênica e tema em perfeita sintonia, melhor que muito time por aí.
Deixo claro que tudo isso é uma leitura técnica, minha função aqui no Blog, mas o público é o melhor juiz, pois o espetáculo é feito para ele e o gostar ou não de determinada estética ou condução da dramaturgia é direito pleno de todo espectador.


Flávia Regina Marquetti

Inadequada Futebol Clube (Cia Inadequada - São Paulo / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Nada mais adequado em dia de vitória do Brasil na copa do que a apresentação da Cia Inadequada de São Paulo, com uma proposta interativa que aproveitou a alegria da torcida, reunida diante do Teatro Municipal, para fazer a festa da Inadequada futebol clube. Com muito jogo de cintura, os atores da Inadequada driblaram os “adversários”: aqueles que já tinham comemorado o suficiente para duas copas, as famosas vuvuzelas (que Nelson Rodrigues deveria conhecer como cornetas, mas com certeza adoraria o novo nome... já que permite um bom trocadilho), o barulho dos carros e com esplêndidos olés conquistou o público que foi para vê-los e os que nem sabiam do que se tratava.
Com crônicas de Nelson Rodrigues sobre o futebol, muito bem escolhidas, o timão da Inadequada mostrou muita raça em campo, sabendo aproveitar a grande paixão do brasileiro e toda a codificação de gestos e expressões que compõem esse universo em arte. Desprovidos de cenário, iluminação, objetos cênicos, os atores contam apenas com seus corpos e indumentária, um simpático uniforme de futebol, com meias de várias cores e nas costas de cada participante números que formam a palavra GOOL!, de ponta-cabeça, grande sacada. A Inadequada conseguiu, com esses poucos recursos, um belo espetáculo.
Flávia Regina Marquetti

domingo, 20 de junho de 2010

Pocket Show Maldito (Show com Os Cubanista)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Sai de Si (Cia Arte & Performance - Araraquara / SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria


A proposta da Cia Arte & Performance tinha a irreverência e frivolidade do contemporâneo que apontei como falta na apresentação da Ditirambo Cia de Dança Contemporânea, mas infelizmente a resolução cênica não atingiu o esperado.
Quando se fala de frivolidade na arte contemporânea está se falando de propostas que não coloquem a arte num pedestal, como a da Cia Arte & Performance, de explorar o banheiro e suas várias funções na vida do homem, mas isso não quer dizer que se deva esquecer a qualidade do produto. Faltou além de técnica, uma melhor amarração entre a idéia original, seus desdobramentos e um aprofundamento no tema. As cenas de dança não contribuem em nada para o texto, algumas boas piadas que poderiam ter surgido, como no caso dos escritos de banheiro, ficaram prejudicadas pelo fato de a platéia não conseguir ler o texto, coisa banal de se resolver, já que se usou recursos de mídia; o mesmo ocorre com a cena de convidar uma jovem da platéia para ir ao banheiro, é notório que as mulheres vão em grupo ao banheiro, mas parou aí a idéia, ela não teve uma continuação, poderia ter sido feita uma conversa lá atrás na coxia que o público estaria ouvindo, e, finalmente, se revelaria o porquê delas irem juntas ao banheiro e assim outras tantas coisinhas que ficaram sem o acabamento e o desenvolvimento necessário para que Sai de Si justificasse o título.
Um banheiro bem família, tirando a morte, não vimos ninguém se drogar, amar, se prostituir e tantas outras coisas que ocorrem em banheiros, mesmo o ato de despir-se, que é mais característico de todo e qualquer banheiro ficou a meio termo, comportadamente vestido, entendo que na fragilidade do espetáculo apresentado não caberia a nudez, mas então, porque fazer referência a ela. Em suma, ninguém saiu de si neste espetáculo, quem sabe em um próximo o espetáculo ganhe novos contornos, melhores textos e sai de si realmente.
Em tempo, existem alguns achados muitos bons, como a sequência de imagens de banheiros, a escolha da indumentária e elementos cenográficos, ou ainda o de cantar sob o chuveiro com as toquinhas de banho, mas por hora, são só isso, achados. Uma pena.

Flávia Regina Marquetti

sábado, 19 de junho de 2010

A Farsa do Advogado Pathelin (Grupo Rosa dos Ventos - Presidente Prudente/SP)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Maistre Pierre Pathelin é uma farsa que remonta às festas dos bufões e dos agressivamente chistosos menestréis, encenada pela primeira vez em 1465 ela ainda guarda toda a vitalidade, sobretudo quando o Grupo Rosa dos Ventos empresta-lhe toda a sua garra.
Como nas feiras de Ruão, o fio condutor dos atores é a história do Mestre Pierre Pathelin, um advogada charlatão, que vem recheada de piadas e brincadeiras grosseiras (bem no espírito das farsas da Idade Média), canções, técnica circense, música ao vivo (destaque para a “banda” composta por um elemento, Robson Toma, que confere todo um colorido à ação), além de muita energia e irreverência de todo o grupo.
No espetáculo da Praça Pedro de Toledo, a criatividade e a presença de espírito dos participantes ficaram evidentes, graças à intervenção de um andarilho, que tentou roubar a cena, mas foi batido pelo quarteto. Essa espirituosidade é imprescindível para a realização de espetáculos em praça, sem ela todo o projeto naufraga, o que é claro não ocorre com o Grupo Rosa dos ventos.
O Grupo, divertido e muito à vontade, foi um espetáculo já na passagem de som, sorte de quem chegou cedo e pegou a “primeira parte” desse improvisado espetáculo. O cenário, os figurinos e maquilagem dão o arremate nesta gostosa farsa, tudo aparentemente muito simples, mas de funcionalidade perfeita para a condução da peça e para o riso da platéia.
Para os que viram o Grupo Galpão, ontem, e o Grupo Rosa dos Ventos, hoje, pode se considerar um felizardo, pois em menos de 48 horas pode experimentar as delícias do teatro da Idade Média, sem os seus riscos. Estéticas bem diferentes, que mantiveram nos espetáculos a essência das propostas Medievais, ao mesmo tempo, que as contextualizaram para o público de hoje.

Flávia Regina Marquetti

è.Change (Ditirambo - Araraquara / SP)

è.change
O segundo espetáculo da noite de abertura da Semana Luiz Antônio, è.change, da Ditirambo Cia de Dança Contemporânea, trouxe uma homenagem à diretora, bailarina e coreógrafa Pina Bausch, com forte referência ao Cabaret Müller, propõe uma reflexão sobre as “trocas” afetivas.
Estreiando o espetáculo na Semana, a Ditirambo, mostra a busca por uma linguagem corporal que expresse as novas relações do homem, aliando a esta um texto didático/explicativo sobre as novas propostas de relacionamentos.
Sem o amadurecimento que o espetáculo deve atingir, a Ditirambo, esboça algumas ousadias, mas ainda sem a convicção do gesto profundamente refletido, como quando os bailarinos exploram o obsceno, muito sutil, ficando a meio termo entre o choque e o aceitável.
Talvez uma boa dose de humor e fina ironia contribua para que o espetáculo ganhe o ar contemporâneo buscado pela Ditirambo, pois como muito bem falou o prof. Jorge Coli, em sua palestra no Território da Arte, uma das grantes propostas da arte comtemporânea é a frivolidade, o não se levar a sério a arte, ela, como todo o resto (e aí entra a proposta dos relacionamentos modernos) é ganho, está ligada ao mercado. O texto lido durante a apresentação explora exatamente isso, mas faltou essa frivolidade no trato dos corpos, ainda muito sérios e crentes na transcendência dessa arte.
è.change tem um belo caminho à sua frente e tenho certeza que o espetáculo ainda vai crescer muito.
Flávia Regina Marquetti

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria

Till, a saga de um herói torto (Grupo Galpão - Belo Horizonte)

Foto: Fabricio Guerreiro/Assesoria


Till em terras de Macunaíma

A Semana Luiz Antônio começou com o brilho que só os que amam o teatro podem conferir, Till, a saga de um herói torto, do Grupo Galpão de Belo Horizonte foi uma apresentação irretocável, divertida e que trouxe para a praça todas as “estrepolias” de um mundo Medieval com sabor de Brasil.
O universo do Teatro Medieval, com suas Farsas e Moralidades é a base para Till, numa disputa entre Deus e o Diabo, bem ao sabor do medievo, o zombeteiro Till (tradução literal de Eulenspiegel) surge como “marionete” ou palco para disputa entre esses dois grandes poderes.
Mas porque encenar hoje uma peça Medieval?
Ficou bastante evidente aos que assistiram ao espetáculo ontem que o Grupo Galpão se fez esta pergunta e achou não uma, mas várias respostas para a questão. Num mundo de trapaças e falcatruas, de espertalhões e aproveitadores só o riso, a ironia pode realinhar uma rota que parece perdida. O universo de Till nos é muito próximo, nos faz lembrar de Macunaíma e nos oferece um espelho onde vemos retratada a malandragem tão cara ao nosso teatro desde Pena até Osvald e Luiz Antônio e, ao mesmo tempo, um lirismo e delicadeza só perceptível no Grande Teatro, aquele que, independente da estética, nos revela o que há de mais importante no homem, a poesia, o sonho. Destaque nesse sentido para o delicioso trio de mendigos cegos da peça, alegoria do próprio ser humano e suas cisões.
Mesclando as linguagens presentes no Teatro Popular, com seu humor simples e jogos com o público, e no Teatro Medieval, com seu tom narrativo e didático, que mais tarde Brecht vai reutilizar, o uso de recursos cênicos como alçapões, bombas de fumaça, a presença sedutora do Diabo em cena e a respeitosa ausência de Deus e outros efeitos teatrais bem ao sabor do período, o Grupo Galpão apresenta uma releitura de Till, que guarda o sabor do teatro religioso medieval, mas com um tempero bem nosso, de nossos ditos e referências modernas.
As músicas, tocadas em cena pelos integrantes, a agilidade e colorido do espetáculo, o uso de um cenário, iluminação, maquilagem e indumentárias magistralmente escolhidos e de uma funcionalidade cênica característica do Galpão, aliada a interpretações magníficas, nos transportaram no tempo, para as grandes festas religosas realizadas nas praças da Idade Média, mas também nos fizeram refletir sobre quão pequena é a distância entre Till e sua falta de consciência e o homem moderno.
Como as Moralidade, Till deixa uma mensagem sobre o homem e sua possível transformação, mas acima de tudo nos deixa a crença na Arte, no Sonho, no Teatro como expressão do que há de melhor no Homem.

Flávia Regina Marquetti









sábado, 12 de junho de 2010

EnCaNtAções


“De todas as glórias, a menos enganadora é a que se vive.
O Ator escolheu, pois, a glória inumerável, a que se consagra e que se experimenta.”
A. Camus, A Comédia.


Ao abrir este espaço para discussão do fazer teatral, sinto um enorme prazer e responsabilidade, prazer, claro, em dividir com todos os que amam o teatro as experiências vividas com as apresentações que farão parte desta 22ª Semana Luiz Antônio; responsabilidade por “encarnar” a mediadora entre os sonhos dos primeiros realizadores da Semana Luiz Antônio e seu público atual.
Para aqueles que não conhecem a história da Semana Luiz Antônio Martinez Corrêa talvez este pareça ser apenas mais um evento cultural de nossa cidade, mas a SLAMC é muito mais, ela foi o ponto de partida para a criação de uma associação, sem fins lucrativos e a partidária, dos artistas e produtores de artes em Araraquara, APAU de Arara, que lutou por mais de dez anos por uma proposta cultural para a cidade, além da reabertura do Teatro Municipal, fechado na época, a criação de cursos voltados para as artes e o fazer teatral que capacitassem seus profissionais e, ainda, que se respeitasse o nome do patrono da Casa da Cultura, Luiz Antônio Martinez Corrêa.
Ao longo desses anos, a realização da Semana Luiz Antônio contou com o empenho e a arte de muitos, artistas ou não, profissionais e técnicos das mais diversas áreas que unidos promovem um encontro cheio de Encanto e cuja Ação tem a Arte como ponto de partida e de chegada. E é a esses personagens todos, reais ou fictícios, que nasceram e desapareceram nas praças, bairros, tablados e palcos, alimentados pela carne, sangue e alma de atores ilustres ou não, que eu venho reverenciar, pois se a luta foi feita por homens, o veículo sempre foi a glória fugaz de um gesto perfeito que morre no momento seguinte, restando quando muito uma foto, petrificando a emoção.
Falar do efêmero, esta é a minha tarefa neste blog. Discutir um espetáculo teatral é tentar apreender o fugidio, não é falar de um texto impresso, de uma cena que se pode voltar com o auxílio da tecnologia, é, ao contrário, chamar a atenção para o momento de beleza e arrebatamento que só os grandes espetáculos conseguem. Grande é entendido aqui como toda obra teatral que no momento exato de sua realização consegue apanhar a nossa consciência e faze-la lançar um olhar sobre si mesma, sobre sua condição humana, transformando-a.
Convido a todos a exercitarem os sentidos e a razão nessa captura do fugidio.
A todos os que sempre tornaram possível a realização da Semana Luiz Antônio...
EVOÉ!
E uma Semana com muita Lu(i)z !

Flávia Marquetti

terça-feira, 8 de junho de 2010

blog da semana - prólogo

A XXII Semana Luiz Antônio Martinez Corrêa - Festival de Teatro apresenta seu blog. A organização convidou a professora Dra. Flávia Regina Marquetti para coordenação de um trabalho de crítica e reflexão sobre os espetáculos apresentados, com resenhas que alimentam diariamente o blog, transformando-o num canal de debates sobre processos criativos nas artes cênicas.
Dra. Flávia Regina Marquetti - Formada em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP deAraraquara, com Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em Estudos Literários, também pela UNESP; Pós-Doutorado pela UNICAMP, junto ao Núcleo de Estudos Estratégicos – área de História Antiga. Professora de Grego Clássico, Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Semiótica; no Curso Técnico em Arte Dramática do SENAC ministra as disciplinas de História do Teatro e Teatro Brasileiro; membro do Grupo de Leitura Dramática de textos Clássicos Giz-en-Scène, desde 1987 e do Grupo de Teatro Jatubá, 1986-1999, sob direção de Lauro Monteiro.

Partipe deste forum de ideias e comente suas impressões sobre os espetáculos do Festival. Encante-se nesses cruzamentos!

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