Prólogo

O ATOR E AS CIDADES

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

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A arte do ator é feita de chegadas e partidas, a cada cidade uma nova experiência, em cada uma ele deixa um pouco de si e leva um pouco de tudo: rostos, risos, lágrimas, histórias, vivências, sensações. O trânsito, a mobilidade é a pátria do despatriado ator, vagar entre culturas, costumes e tempos diferentes é sua sina e paixão, pois ele se compõe e recompõe de cada momento. Tolo é aquele que pensa que a arte morre, tem seu lugar determinado por marcas geográficas, por cronologias... a arte foge de todo e qualquer enquadramento, não cabe no mapa, pois é cigana, não (re)conhece fronteiras, ela se constitui a partir do trânsito, do vagabundear do ator, seu veículo. Em sua carne e expressões ela ganha corpo e reflete os rostos de todos os homens de todos os tempos, arguta e criativa, ela mimetiza o mundo e esse seu habitante conturbado, o Homem e é adsorvida por ele.

A 24ª Semana Luiz Antônio traz a criativa itinerância que brota da releitura de grandes clássicos, de personagens que vagaram pelo mundo e foram incorporando os novos tempos, as novas cidades e estéticas. Em seus corações pulsam as lembranças da origem, mas em suas vestes o novo, o arrojado trânsito por locais insondáveis. E como diz o poeta:


a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa.

Ferreira Gullar



Evoé! e muita Lu(i)z...



Flávia Marquetti



sexta-feira, 24 de junho de 2011

UM OLHAR TECIDO EM SONHOS ... PARA VESTIR


                                                                                Fotos: Lívia Cabrera


Sara Antunes, que já nos havia encantado ontem com Negrinha, hoje nos levou ao mais delicado arranjo de lembranças, desejos e hipóteses construído de/sobre palavras. Interagindo com o público e tecendo a partir desta intervenção toda a “dramaturgia” do espetáculo, Sara demonstra, como já o havia feito no espetáculo anterior, um domínio absoluto sobre este difícil e arriscado jogo. Como nos antigos desenhos para bordar, ela preenche, a partir de um contorno delineado, todo o espetáculo.

O texto, como a cenografia e o figurino, explora as transparências, deixando ver siluetas de encontros e despedidas. Em cena a iluminação feita por pequenas lâmpadas encapadas por tecidos bordados desenha sombras e lembranças. Momento mágico é o do primeiro vestido tecido pela mãe, com o qual a personagem, já adulta, se cobre, vestindo-o pela cabeça – parto às avessas – o desejo de retornar a infância, a um tempo de ilusões e alegrias. Como em um passe de mágica, a criança se faz mulher, o pequeno vestido se transforma em véu nupcial, cobrindo seus cabelos e ligando dois momentos diversos: o agora ao início da peça quando, com o auxílio de alguém da platéia, ela se desvela para a noite de núpcias, desenrolando uma fita dourada que traz presa à cintura. Fundindo filha, esposa e mãe, a um só tempo todos esses papéis femininos estão ali presentes.

Não é sem intenção que o primeiro vestido está em uma grande caixa prateada, que a personagem acaba por ocupar, como o vestido, ela é um presente, e aqui a ambiguidade das palavras ganha valor redobrado: presente/mimo e presente/momento atual, ambos confrontando-se com o passado e as lembranças. O magnífico painel bordado, que é, também, desvelado ao final da peça, ecoa na pequena e frágil boneca de papel “presa”, suspensa em um cubo transparente, símbolos desta delicadeza, desta feminilidade, capturada pelo e no tempo.

A peça, riquíssima de elementos femininos, como a jarra, a bacia e a caixa de prata, a água, os tecidos e os véus, recorta e insinua esse universo sinuoso e circular no qual vida e morte se confundem, oferecendo outro ângulo para se ver/pensar o mundo. A palavra poética de Sara Antunes, somada ao cenário mágico de Analu Prestes e à direção delicada de Vera Holtz confirma a veracidade da frase de Guimarães Rosa: “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.
Flávia Marquetti

3 comentários:

  1. Lindas palavras sobre nosso trabalho Flávia.Adoramos estar com vcs todos e deixar muitos sonhos em aberto para serem vestidos!!!
    Bjs e obrigada

    Analu Prestes

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  2. Foi imposivel não tirar os olhos de Sara Antunes, imposivel não desgrudar os ouvidos das cada palavra dita, de cada nota emitida pelo piano ... Maravilhoso, espetacular, e IMPOSIVEL de não se APaIXONAR ...

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  3. Alimentando sonhos!!!
    Desde o "Café de Investigação" Sara Antunes nos motivou a sonhar e a realizar o que se sonha. Durante o espetáculo ficou claro a realização de um sonho! Bem sonhado!

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