Danielle Aquino
A “história de verdade, inventada” por Gabriela Rabelo e dirigida por José Renato, espetáculo endereçado especialmente ao público adolescente (lembro a raridade de dramaturgias e encenações voltadas a esse público), aconteceu na tarde de ontem para uma platéia escolar. O atraso de uma escola colaborou para entrada tumultuada de estudantes despreocupados com seu entorno. Assim, o espetáculo que começou atrasado foi se impondo aos trancos e barrancos e os mais interessados puderam embarcar, meio que atabalhoadamente, na viagem do Grupo Luz e Ribalta, ainda que manifestações gratuitas (falo do riso e das exclamações bobas) seguissem acompanhando determinadas cenas até o final da trama quando o elenco foi – surpresa! - ovacionado como se aquela platéia tivesse assistido ao “maior espetáculo da terra”.
O teatro é uma arte que resulta da combinação de vários elementos que são articulados de acordo com a perspectiva cênica eleita por um diretor ou por quem esteja à frente da encenação. A platéia presente teve ontem à sua disposição a oportunidade de apreciar um espetáculo construído com dedicação onde gravitava a maioria dos elementos que compõe uma encenação própria de um palco italiano: elenco afinado, ótimos protagonistas (incrível a semelhança do ator que interpretou Macunaíma com Grande Otelo, em especial pelo timbre vocal), boa sonoplastia, belo projeto de luz (ainda que muitas vezes tateante provavelmente pelo operador não estar ainda familiarizado com a mesa de iluminação), bonito cenário, figurino e adereços adequados... Um elemento fundamental para que o teatro aconteça é o público. Esse, o único elemento que não pode faltar, foi o que deu o tom desafinado de “O grande grito” (que imagino ter sido também motivo do desabafo final de “Mario de Andrade”).
Mas todos nós fomos crianças e adolescentes. Quando adolescente, o teatro que eu conheci era feito nos circos. Findo os números de variedades e trapézio, a gente corria, cada um com sua cadeira para encontrar o melhor lugar em frente à ribalta. Atentos e encantados acompanhávamos os melodramas e comédias que faziam parte de um repertório comum a todos os chamados circos-teatros.
Sei que quando já não somos crianças ou adolescentes, esquecemos o que fomos e podemos ser mais intolerantes do que o admissível, se é que existe intolerância admissível! Mas como educadores, que também somos, temos que aprender a superar esse traço e educar para além da simples instrução escolar. Ir ao teatro é, ou deveria ser um acontecimento, se as escolas preparassem os alunos para tanto (em especial pelo assunto que serviu de base à autora do texto de ontem: o famoso acervo trazido por Mario de Andrade da pesquisa que o escritor fez no norte e nordeste do Brasil no final dos anos 30 e que ficou largo tempo abandonado). E Mario de Andrade sendo especialmente importante para Araraquara, jamais poderia ter sido recebido como o exemplo da tarde de ontem oferecido pela escola que chegou atrasada para a função. Teatros não admitem atraso, ou não devem admitir, e isso é parte inclusiva da educação por meio disso que chamamos cultura.
Quanto ao espetáculo, tivemos a coexistência em cena de duas realidades: uma imaginária, oriunda de personagens literários, da cultura popular e do “espírito” de Mario de Andrade, e outra extraída da vida anômica do nosso dia-a-dia: família, riqueza, trabalho, juventude, droga, crime... Essa dualidade permitiu à dramaturga oferecer aos espectadores um texto cujo maior mérito, segundo minha leitura, foi transformar o tradicional antagonismo que encontramos na eterna discussão entre civilização e cultura, em especial quando visitamos a herança deixada por Rousseau, no fundamento para armar seu conflito dramático. Assim, estava em cena o tesouro representado pela cultura esquecida, oposto à barbárie de personagens reais que entendem essa palavra apenas como riqueza material feita de jóias, ouro e dinheiro. O olhar lacrimoso de Mario de Andrade, sua incompreensão para com o descaso em relação a valores maiores e sua indignação para com a ignorância, violência e brutalidade do nosso cotidiano, desembocaram no “grande grito” de Gabriela Rabelo, cujo pecado foi não ter logrado se libertar da dicotomia que lhe serviu de base. Não foi um pecado capital, pois seu grito também é nosso!
Eduardo Montagnari
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