Fotos: Danielle Aquino
Como descrever o prazer de se perceber uma encenação? Essa é a dificuldade primeira de escrever sobre a peça Negrinha, de Sara Antunes. Antes de qualquer coisa, esta é uma peça que nos pega pelos sentidos: audição, visão, olfato e, para alguns escolhidos, também o tato. A presença de cheiros, sons e ruídos, luz e escuridão, alternando-se ao longo de toda a peça, exige do espectador uma atenção e percepção completa.
Optando por um espaço alternativo, o salão do Palacete das Rosas e distribuindo o público por todo o espaço (sentados em cadeiras no alto, em pequenas arquibancadas e cubos), alternando-o com móveis antigos, objetos cênicos, cortinas e iluminando tudo apenas com a luz de poucas velas, Sara Antunes, com uma representação impecável, nos fez transitar entre a casa grande e a senzala, com direito a vasculhar o porão ou baú de lembranças da escravidão, ora na mente da pequena Negrinha ora na dos senhores.
Após a acomodação do público, a escuridão... e o som de grãos que caem em uma vasilha de metal, mas que também sugerem galhos que batem na vidraça com o vento... ilusão dos sentidos que perdurará por toda a peça. Os grãos, que poucos de nós realmente vêem, são descritos como pretos (feijão), brancos (canjica) e amarelos (milho), que se destinam ora ao homem ora aos animais, tudo muito simples, aparentemente, apenas um trabalho doméstico da menina Negrinha, mas que se revela a primeira separação/segregação pela cor. O jogo com as cores se repetirá, com o auxílio do público, ao longo de toda peça, dando sempre a idéia de uma brincadeira, mas que constrói uma rede de “desconforto”, pois acertar (ou não) a cor de algo é arbitrário.
A própria atriz, com a iluminação das velas, ganha tonalidades diversas, do branco ao pardo e mesmo o negro, ao colocar o corpo na total penumbra, demonstrando que a cor depende do ângulo que se olha o objeto. Não sem malícia o texto nomeia àquela que criou Negrinha de Áurea Cândida, aludindo à cor (branco), mas também à Lei Áurea (que embora tenha libertado os escravos, jogou-os na mais absoluta miséria e marginalidade) e a uma ingenuidade/pureza que não condiz com a personagem, proprietária da casa de açúcar, outra ambiguidade deliciosa, pois sobrepõe o branco/doce do produto da cana ao branco/cruel da casa grande e dos senhores de engenho. Quem conhece o conto de Monteiro Lobato, no qual o texto da peça foi baseado, sabe o quão terrível é a figura dessa senhora de escravos e a que castigos absurdos ela submete a pequena negrinha.
Vale destacar ainda o efeito magistral que é conseguido com a queima de uma palha de aço, colocada em moldura dourada, para representar o debandar dos negros pelas montanhas após a libertação. Consumida irregularmente, a palha de aço desenha caminhos iluminados por tochas, mas, como tudo na peça, a bela imagem é também ambígua, pois remete à pintura e à visão/versão dada pela classe branca dominante ao fato histórico em questão.
Sintetizando o abandono, o desprezo, a solidão de todo um povo, o monólogo denso e, por muitas vezes, divertido desta Negrinha tenta jogar um pouco de luz e resgatar a dignidade e a humanidade de boa parcela da população brasileira.
Flávia Marquetti
Poucos são os espetáculos que encantam... Sara arrasou. Ela faz a gente pensar. Não só no preconceito, na discriminação e no abuso, mas também nos sentimentos, na saudade, no riso... E nos inquieta diante da situação em que vive a personagem. Linda.
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