Prólogo

O ATOR E AS CIDADES

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

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A arte do ator é feita de chegadas e partidas, a cada cidade uma nova experiência, em cada uma ele deixa um pouco de si e leva um pouco de tudo: rostos, risos, lágrimas, histórias, vivências, sensações. O trânsito, a mobilidade é a pátria do despatriado ator, vagar entre culturas, costumes e tempos diferentes é sua sina e paixão, pois ele se compõe e recompõe de cada momento. Tolo é aquele que pensa que a arte morre, tem seu lugar determinado por marcas geográficas, por cronologias... a arte foge de todo e qualquer enquadramento, não cabe no mapa, pois é cigana, não (re)conhece fronteiras, ela se constitui a partir do trânsito, do vagabundear do ator, seu veículo. Em sua carne e expressões ela ganha corpo e reflete os rostos de todos os homens de todos os tempos, arguta e criativa, ela mimetiza o mundo e esse seu habitante conturbado, o Homem e é adsorvida por ele.

A 24ª Semana Luiz Antônio traz a criativa itinerância que brota da releitura de grandes clássicos, de personagens que vagaram pelo mundo e foram incorporando os novos tempos, as novas cidades e estéticas. Em seus corações pulsam as lembranças da origem, mas em suas vestes o novo, o arrojado trânsito por locais insondáveis. E como diz o poeta:


a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa.

Ferreira Gullar



Evoé! e muita Lu(i)z...



Flávia Marquetti



sábado, 23 de junho de 2012

PENÉLOPE


Escrever sobre a peça Penélope é umas das tarefas mais difíceis dessa 24ª Semana Luiz Antônio, pois para abarcar toda a riqueza que se colocou no palco seria necessário, pelo menos, umas 50 laudas, que infelizmente não tenho aqui. Três atrizes, três mulheres e um fato, um acidente envolvendo personagens de um triângulo amoroso, nada mais cotidiano e banal, e é exatamente por ser esse fato tão “prosaico” que ele ganha vulto, que se mostra absurdo, todos olham o seu desdobramento, o espancamento da esposa pelo marido traidor, sem fazer nada. Esse é o mote para que as três atrizes construam o mais visceral espetáculo sobre o feminino.
Em tempos de marcha das vadias... Penélope Vergueiro se coloca na vanguarda e resgata séculos de opressão e submissão de forma estupenda, a começar pelo título da peça, que usa a figura mítica da esposa perfeita: Penélope, casada com Ulisses, guerreiro grego que participou da guerra de Tróia, e que se recusa a aceitar outro marido. Obstinadamente ela aguarda o seu retorno por 20 anos, tecendo a mortalha do sogro durante o dia e desmanchando-a a noite. Símbolo de fidelidade e submissão ao marido, Penélope ganha na peça um sobrenome, Vergueiro, rua onde aconteceu o acidente, fundindo, dessa forma,  séculos e transformando-a em símbolo da condição feminina.
O palco, compartilhado com o público, é isolado, como no dia do acidente, por uma fita zebrada, ali estamos como espectadores da peça, mas também espectadores omissos da batida e da violência cotidiana contra a mulher. A distribuição de camisas masculinas para alguns espectadores, de ambos os sexos, logo à entrada, prenuncia não só a nossa participação na peça, mas também o caráter machista que tanto homens e mulheres apresentam. O sobrepor destas camisas no corpo de uma das atrizes as metamorfoseiam em camisa de força. Assim, amarrada, sufocada e aviltada é posta em cena a condição da mulher.
Todos os objetos cênicos são retirados do universo feminino, como uma batedeira, um secador de cabelos, a bolsa rosa (Penélope Charmosa?! Barbie?!), os óculos de sol, o batom, as escovas de cabelo, o balde de plástico e outros; todos eles ganham um novo contexto, são armas contra o feminino. A cena inicial com a batedeira de bolos é de arrancar as entranhas de qualquer mulher, assim como a cena da camisinha, ou a poética, se posso usar esse adjetivo, cena em que uma das atrizes limpa o chão com o corpo da outra, transformando-a em escovão ou “aspirador de pó”, enquanto canta uma bela canção de amor, de espera pelo amado. A trilha sonora é impecável, assim como a iluminação e a atuação das três atrizes. O texto é magistral, tenso, preciso em cada ponto, ora dividido ora dito pelas três atrizes. Talvez escape ao espectador menos informado o porquê do uso de uma tríade feminina em cena, todos os monstros ou flagelos míticos são representados por três mulheres: as megeras, as fúrias, as moiras, as harpias etc.
Sem ser maniqueísta, a peça não toma partido nem da esposa nem da amante, ambas são objetos de uso, enganadas, servem ao seu papel desde que não se rebelem. Monstro, objeto, trapo essa a imagem do feminino na sociedade, no placo a denúncia dessa condição feita pela arte e com arte, com força, entrega e sensibilidade.
Flávia Marquetti




Foto: Alexandre Krug

Um comentário:

  1. Ate agora estou encantada, fascinada com esse espetaculo. Espero ver mtas outras vezes essas tres atrizes fantasticas ...

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