Prólogo

O ATOR E AS CIDADES

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

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A arte do ator é feita de chegadas e partidas, a cada cidade uma nova experiência, em cada uma ele deixa um pouco de si e leva um pouco de tudo: rostos, risos, lágrimas, histórias, vivências, sensações. O trânsito, a mobilidade é a pátria do despatriado ator, vagar entre culturas, costumes e tempos diferentes é sua sina e paixão, pois ele se compõe e recompõe de cada momento. Tolo é aquele que pensa que a arte morre, tem seu lugar determinado por marcas geográficas, por cronologias... a arte foge de todo e qualquer enquadramento, não cabe no mapa, pois é cigana, não (re)conhece fronteiras, ela se constitui a partir do trânsito, do vagabundear do ator, seu veículo. Em sua carne e expressões ela ganha corpo e reflete os rostos de todos os homens de todos os tempos, arguta e criativa, ela mimetiza o mundo e esse seu habitante conturbado, o Homem e é adsorvida por ele.

A 24ª Semana Luiz Antônio traz a criativa itinerância que brota da releitura de grandes clássicos, de personagens que vagaram pelo mundo e foram incorporando os novos tempos, as novas cidades e estéticas. Em seus corações pulsam as lembranças da origem, mas em suas vestes o novo, o arrojado trânsito por locais insondáveis. E como diz o poeta:


a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa.

Ferreira Gullar



Evoé! e muita Lu(i)z...



Flávia Marquetti



domingo, 26 de junho de 2011

O OLHAR EXÓTICO DE CASA/CABUL



                                                                                                Fotos: Lívia Cabrera

A apresentação de Casa/Cabul trouxe para a 23ª Semana Luiz Antônio um olhar sobre as diferenças culturais que marcam o Ocidente do Oriente Médio, sobretudo o mulçumano, mas com uma reflexão bastante interessante: a de quanto a aparente "liberdade" Ocidental, sobretudo a feminina, encontra-se esvaziada de sentido, assim como a vida da classe média.

É interessante o jogo espectral estabelecido entre a dona de casa inglesa e a bibliotecária afegã. Ambas profundamente insatisfeitas em seus relacionamentos, em sua condição de mulher, em suas vidas sociais e ambas corajosamente prontas a reverter este quadro. A inglesa sonha com o universo mítico de uma Cabul, no qual as relações não são feitas de aparência, marcada (historicamente) por lutas e conquistas. A fala da filha, já no Afeganistão, resume tudo: país no qual as pessoas que se odeiam se matam.

Destaque para o “divertido monólogo” inicial da peça no qual a inglesa alterna suas frustrações pessoais, familiares e sociais às informações obtidas em um antigo guia turístico sobre Cabul (com mais de 30 anos), enfatizando as guerras travadas no território, do hoje Afeganistão, ao longo dos séculos. A correlação estabelecida aí vai se mostrar ainda mais intensa quando, ao desenrolar-se a trama, se descobre que ela fugiu para Cabul e tornou-se esposa de um mulçumano, convertendo-se ao islamismo. Hipótese absurda para seu marido, filha e grupo social.

Em contrapartida, a afegã, mulçumana, sonha com a liberdade de expressão, deseja ardentemente poder voltar a ler livros, já que só lhe é permitida a leitura do Corão. Não sem humor, a peça faz essas duas mulheres trocarem de país, religião e maridos, convidando-nos a refletir sobre os valores impostos a cada um e a nos questionar: o que é realmente importante em nossas vidas?! As respostas podem ser bastante diversas, opostas até. Outra reflexão fundamental é sobre a noção de liberdade no Ocidente, seria realmente liberdade?!

Com interpretações muito boas, um cenário que se transformava ora na Londres moderna, ora na cidade de Cabul e uma luz muito bem desenhada, o Núcleo Experimental de Teatro, de São Paulo, resgatou o formato do teatro tradicional, o público sentado na platéia, os atores no palco, o que causou a alegria de alguns, com saudades do bom teatro convencional, sem espaços e dramaturgias alternativos. O único se não é o tempo do espetáculo, 150 min. Alguns cortes poderiam tornar a peça mais ágil e intensa, mas é sem dúvida um belo espetáculo.


Flávia Marquetti

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